terça-feira, 24 de junho de 2014

O ópio dos povos?

Em que o Futebol se parece com Deus? Na devoção que desperta em muitos crentes e na desconfiança que desperta em muitos intelectuais. Em 1880, em Londres, Rudyard Kipling desdenhou o futebol e as “almas pequenas que podem ser saciadas pelos enlameados idiotas que jogam”. Um século depois, em Buenos Aires, Jorge Luis Borges foi mas sútil: proferiu uma conferência sobre o tema da imortalidade no mesmo dia, e na mesma hora, em que a seleção argentina estava disputando sua primeira partida na Copa de78. O desprezo de muitos intelectuais conservadores se baseia na certeza de que a idolatria da bola é a superstição que o povo merece. Possuída pelo futebol, a plebe pensa com os pés, como corresponde, e nesse gozo subalterno se realiza. O instinto animal se impõe à razão humana, a ignorância esmaga a Cultura, e assim a ralé tem o que quer. Por outro lado, muitos intelectuais de esquerda desqualificam o futebol porque castra as massas e desvia sua energia revolucionária. Pão e circo, circo sem pão: hipnotizados pela bola, que exerce uma perversa fascinação, os operários atrofiam sua consciência e se deixam levar como um rebanho por seus inimigos de classe. Quando o futebol deixou de ser coisa de ingleses e de ricos, no rio da Prata nasceram os primeiros clubes populares, organizados nas oficinas das estradas de ferro e nos estaleiros dos portos. Naquela época, alguns dirigentes anarquistas e socialistas denunciaram esta maquinação da burguesia destinada a evitar as greves e mascarar as contradições sociais. A difusão do futebol no mundo era o resultado de uma manobra imperialista para manter os povos reduzidos à idade infantil – para sempre. No entanto, o time Argentinos Juniors nasceu chamando-se Clube Mártires de Chicago, em homenagem aos operários anarquistas enforcados num primeiro de maio, e foi um primeiro de maio o dia escolhido para fundar o clube Chacarita, batizado numa biblioteca anarquista de Buenos Aires. Naqueles primeiros anos do século, não faltaram intelectuais de esquerda que celebraram o futebol, em vez de repudiá-lo como anestesia da consciência. Entre eles, o marxista italiano Antonio Gramsci, que elogiou “este reino da lealdade humana exercida ao ar livre”. Futebol ao sol e a sombra - Eduardo Galeano

sexta-feira, 21 de março de 2014

F.Pessoa

"Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida." Fernando Pessoa

Instante

Uma semente engravidava a tarde. Era o dia nascendo, em vez da noite Perdia amor seu hálito covarde, e a vida, corcel rubro, dava um coice, mas tão delicioso, que a ferida no peito transtornado, aceso em festa, acordava, gravura enlouquecida, sobre o tempo sem caule, uma promessa. A manhã sempre sempre, e dociastuto seus caçadores a correr, e as presas num feliz entregar-se, entre soluços E que mais, vida eterna, me planejas? 0 que se desatou num só momento não cabe no infinito, e é fuga e vento. Carlos Drummond de Andrade